A aprendizagem da Matemática

Introdução

Tendo-me sido proposto pelo grupo iNIGMA, formado por estudantes da licenciatura em Matemática da Faculdade de Ciências da Universidade do Porto, que escrevesse um texto de opinião, perguntei a mim próprio o que é que eu, quando era aluno a começar a licenciatura, teria perguntado a um professor que estivesse disponível a responder a perguntas genéricas. O que eu teria perguntado não sei, mas o que deveria ter perguntado era «Como é que se aprende Matemática?» Este texto contém a minha resposta.

Antes de passar à resposta, quero explicar melhor qual é o tema que pretendo abordar. A Matemática pode ser aprendida a muitos níveis. Por um lado, há a aprendizagem que se vai tendo desde a pré-primária até à Universidade e, eventualmente, depois; desta, só tenciono abordar a do Ensino Superior e a da pós-graduação, não porque a restante seja desprovida de interesse (antes pelo contrário!) mas porque, por um lado, este texto será sobretudo lido por estudantes universitários aos quais pretendo dar sugestões sobre a sua aprendizagem e, por outro lado, porque considero que tenho pouca experiência quanto aos problemas da aprendizagem da Matemática nos ensinos Básico e Secundário. Por outro lado, tanto se pode estar interessado na Matemática por si mesma (é o que se espera de um estudante da licenciatura em Matemática) como se pode encará-la unicamente como um instrumento útil para atingir outros fins. Irei abordar ambos os aspectos.

Aqueles exercícios aborrecidos e repetitivos…

Aos estudantes de Matemática são propostos um grande número de exercícios de rotina, cuja resolução é muitas vezes longa, envolve um certo número de cálculos e, acima de tudo, exige que se memorize um algoritmo, ou seja, um método de resolução. Porquê? Há diversos bom motivos para isso (e também alguns maus…).

A mecanização é importante

Ao contrário do que muitas vezes se poderá pensar, a repetição de exercícios de rotina é importante para melhorar a capacidade de resolução de problemas. É que, quando a nossa mente deixa de estar ocupada a recordar (ou a tentar reinventar) a maneira de efectuar todos aqueles passos, pode dedicar-se a coisas mais importantes. Imagine-se uma pessoa a quem é dado o problema da calcular a área de um terreno rectangular com 32 metros de comprimento e 18 de largura. Suponha-se também que essa pessoa sabe que basta fazer a operação 32×18 mas que não conhece a tabuada e que tem que se lembrar como é o algoritmo da multiplicação. Essa pessoa gastará muito mais tempo a efectuar a operação do que uma pessoa que tenha presentes esses conhecimentos, os quais só envolvem memória e repetição de gestos mentais. Por outro lado, quem já souber conhecer a tabuada e tiver o algoritmo da multiplicação na ponta da língua, não só faz o cálculo muito mais rapidamente como também não cansa a mente, a qual estará então mais apta para pensar noutras coisas.

Neste sentido, a mecanização deve ser encarada como um investimento: gasta-se tempo agora para se ter mais tempo livre para a mente mais tarde. E, na minha opinião, trata-se de um investimento particularmente lucrativo.

Prática versus teoria

Uma impressão errada que se pode ter relativamente aos algoritmos que se devem memorizar é que estes só servem para resolver problemas, o que os torna de algum modo inferiores ao estudo de uma teoria eventualmente mais interessante. Exagerando um tanto, seria como se os espíritos superiores se ocupassem com a criação de teorias novas totalmente desligadas do mundo real, deixando a resolução de problemas concretos aos pobres infelizes incapazes de os acompanhar. Esta visão da Matemática está errada: as grandes teorias matemáticas surgem imensas vezes da tentativa de resolver problemas concretos. Assim, por exemplo:

Além disso, estes métodos revelaram-se importantes porque os seus autores e outras pessoas se aperceberam que poderiam usá-los com sucesso para resolverem um elevado número de problemas. Só que só se pode aperceber disso quem não tenha reservas mentais quanto a usar algoritmos para resolver problemas concretos.

Outro motivo para não se menosprezarem os algoritmos consiste no seguinte princípio: o que é bom para a prática também o é para a teoria! De facto, muitos algoritmos são usados nas demonstrações de teoremas. Por exemplo, um algoritmo usado para determinar se um sistema homogéneo de n equações lineares e n incógnitas tem ou não alguma solução não nula consiste em calcular o determinante da matriz dos coeficientes do sistema; o sistema tem então alguma solução não trivial se e só se aquele determinante for nulo. Pois bem, este mesmo algoritmo é usado para demonstrar teoremas na teoria de Galois!

Persistência

Uma das ideias mais disparatadas que há sobre génios científicos é a de que eles resolvem problemas sem qualquer dificuldade e que, além disso, encontram a resposta correcta à primeira tentativa. Começo por contrariar isto com duas citações, das quais a primeira é famosa e a segunda, não o sendo, merecia sê-lo.

Thomas Edison:
Génio é 1% de inspiração e 99% de transpiração.
Gian-Carlo Rota:
Há uma proporção que permite medir até que ponto se é um bom matemático, que é o número de ideias disparatadas que é preciso ter-se até se chegar a uma boa. Se for de dez para uma, é-se um génio. Para o matemático médio, é capaz de ser cem para uma.

Em resumo, em Ciência ter ideias não é, só por si, particularmente meritório. Qualquer bom livro de Ficção Científica está cheio delas. O que é difícil e exige trabalho e disciplina é, para além de ter as ideias, explorá-las, ver até que ponto são férteis, determinar os seus limites, testá-la, compará-las com outras abordagens.

Outro mito falso (e prejudicial!) é o de que os génios científicos descobrem tudo por si próprios, sem precisarem do conhecimento acumulado dos cientistas que os precederam. É mesmo um lugar comum em filmes ou séries da televisão: o contraste entre o professor pedante, que sabe muito mas não cria nada, e o cientista brilhante que, sem precisar daqueles conhecimentos (e, muitas vezes, ridicularizando quem os possui), resolve problemas dificílimos sem esforço. Só que, como disse um colega meu «um matemático é tanto melhor quantos mais teoremas de cor sabe»! Não, saber muitos teoremas de cor não dá qualquer garantia de que se é um bom matemático. Mas que ajuda a sê-lo, ajuda.

Quando dou aulas a alunos de Matemática do 1º ano, uma atitude com a qual já me deparei por diversas vezes é a de reagirem às primeiras demonstrações a que são expostos com uma reacção do tipo «Isto jamais me ocorreria!» Eu costumo dizer que aos primeiros matemáticos a tentarem demonstrar o mesmo resultado provavelmente também não lhes ocorreu aquela demonstração. É que a Matemática que se aprende naquela fase da aprendizagem já tem, geralmente, muitas décadas, até mesmo séculos. As demonstrações que são apresentadas aos alunos não são as primeiras mas sim as melhores. Mas as primeiras abordagens são geralmente toscas, incompletas e com erros. O matemático russo A. S. Besicovitch disse mesmo uma vez que a fama de um matemático é baseada no número de demonstrações falsas que fez! Ele explicou que o que isto quer dizer é que trabalhos pioneiros são imperfeitos.

O matemático norte-americano Paul Halmos conta na sua autobiografia (ou «automatografia», como ele lhe chama) que, numa carta de recomendação que escreveu, começou por dizer que a pessoa em questão resolvia bastantes problemas mas que as soluções que obtinha eram geralmente longas e deselegantes, sendo muitas vezes possível pegar numa das suas soluções e, retirando o que era supérfluo, obter outra solução dez vezes mas curta. Sendo assim, porque é que o destinatário da carta de recomendação o deveria contratar? Porque, como Halmos escreveu, «ele encontra soluções feias onde outros estão elegantemente encravados»! É um bom princípio a ter em mente: quando se está perante um problema, mais vale ter-se uma solução feia do que estar-se elegantemente encravado.

«Mas o que é que isto tem a ver com aprendizagem?», pode-se perguntar. Afinal, é sabido que os professores não estão interessados em abordagens «toscas, incompletas e cheias de erros» nos exames! De facto, mas uma coisa é aprender Matemática, outra é fazer exames. E não se aprende o que é Matemática sem se tentar compreender as coisas por si próprio, o que por sua vez implica, naturalmente, ir além daquilo que o livro ou o professor disserem. A propósito disto, o matemático francês Laurent Schwartz contou uma vez, numa palestra a que assisti, que, quando foi aluno da Escola Normal Superior, em Paris, achava que era um aluno abaixo da média, porque um bom número dos seus colegas lhe dava a impressão de acompanhar as aulas com muita mais facilidade do que ele. Ao fim de algum tempo, apercebeu-se de um facto que ia contra esta ideia: é que ele era o melhor aluno! Só depois é que encontrou a explicação para o paradoxo: enquanto que os seus colegas que lhe transmitiam a impressão de serem melhores do que ele deviam essa impressão a memorizarem rapidamente os conteúdos das aulas, ele precisava de um esforço suplementar para, não só memorizar esses conteúdos, como, ainda por cima, compreender como cada facto novo se encaixava com aqueles que já tinha ao seu dispor. E, como se pode ver, esse esforço extra compensou!

Dúvidas

Uma ideia parcialmente errada que muitos alunos têm é a de que é melhor não fazer perguntas aos professores, pois podem ser disparatadas e criar má impressão. De facto, há perguntas que podem causar má impressão, como aquelas cuja resposta deveria ser imediata para quem esteja razoavelmente a par da matéria dada ou, pior ainda, aquelas para as quais a resposta já foi dada antecipadamente (não há paciência para aguentar um aluno a perguntar se as matrizes não quadradas também têm determinante após se ter dito umas dezenas de vezes que o determinante só se define para matrizes quadradas). Mas as perguntas que revelam curiosidade e vontade de compreensão provocam quase sempre melhor impressão do que má. Além disso, a experiência revela que, num elevado número de casos, quando um aluno faz uma pergunta numa aula, nenhum dos seus colegas sabe a resposta, o que só mostra como a pergunta é interessante.

Um critério pessoal que uso para formar a minha opinião relativamente a alunos consiste em observar as suas reacções quando me colocam um problema de Matemática cuja solução desconheço mas que tento resolver na sua presença. A maior parte dos alunos pura e simplesmente desliga! A atitude é do tipo «Bolas, ele não sabe!» e encaram o tempo que ficam à espera que eu tente descobrir a solução como um desperdício. Mas os melhores alunos fazem precisamente o contrário: tentam aproveitar a oportunidade para verem como é que eu ajo na minha tentativa de chegar à solução. E há uma diferença abissal entre os alunos que se contentam com terem conhecimentos matemáticos e aqueles que tentam não somente possuir esses conhecimentos como também perceber como os alcançarem por si próprios.

O lado social da Matemática

Um colega meu comentou certa vez, a respeito de ser-se matemático, que «neste trabalho, 50% são relações públicas». E é verdade (bom, talvez com um pequeno exagero)! Um matemático tem todo o interesse em manter-se em contacto com outros matemáticos, quer para ter ideias que possam ajudar a resolver os problemas que lhe interessam, quer para tomar conhecimento de novos problemas. O mesmo se aplica à aprendizagem: é desejável que se contacte com outras pessoas, quer colegas quer professores, a fim de trocar ideias ou receber sugestões. O trabalho individual é fundamental, obviamente, mas o alargamento de horizontes que se obtém através do contacto com outras pessoas também o é. A imagem do matemático genial a trabalhar num isolamento magnífico numa torre de marfim tem pouquíssima correspondência com a realidade. Mesmo naqueles poucos matemáticos que mais deram a impressão de se adequarem a esse estereótipo, como Newton ou Gauss, sabe-se que isso se deveu em grande parte em terem dificuldade em encontrarem interlocutores adequados e não a falta de vontade de trocar ideias.

Estudar Matemática

Não vou descrever aqui como é que faço cada vez que estudo Matemática, pois a maneira mais eficiente de o fazer varia muito de pessoa para pessoa, pelo que cada um deve tentar descobrir quais são as condições em que estuda melhor. Por exemplo, já há muito tempo que constatei que ter música de fundo não me distrai quando estou a tentar resolver um problema mas é bastante incomodativa quando estou a tentar compreender algo novo. No entanto, há algumas ideias que convém ter em mente, quanto mais não seja para ver até que ponto resultam.

Não separar a teoria da prática

Não vou repetir o que escrevi acima quanto à relação entre a teoria e a resolução de problemas, embora esse assunto esteja relacionado com o tópico que vou abordar agora. A crença na superioridade da teoria relativamente à resolução de problemas concretos leva muitas as vezes os alunos a estudarem a teoria sem se preocuparem em resolver exercícios, o que é um erro crasso. Ao lerem-se apontamentos das aulas teóricas fica-se muitas vezes com a ilusão de que se compreende mais de que realmente se compreende, sobretudo se os apontamentos forem bem feitos. O contrário também ocorre: textos mal redigidos podem muitas vezes fazer com que um assunto pareça mais difícil do que o que realmente é. Em ambos os casos, o melhor a fazer é resolver exercícios, quer para testar se se compreendeu bem o assunto, quer para ver se se trata de um tema tão difícil como parece à primeira vista. Caso não se disponha de exercícios, então o melhor é tentar-se aplicar o que se aprendeu a problemas concretos e ver-se se se consegue ou não resolvê-los.

Não gastar demasiado tempo com exercícios de rotina

Quando se está perante uma lista de exercícios «todos iguais» e se tem uma grande dificuldade em resolver um único que seja, então há certamente algo que está errado. Nesta situação, o melhor a fazer é reler a teoria que se está a estudar ou pedir ao professor para explicar novamente o método, consoante o caso que se aplique. Naturalmente, em certos casos não é claro se um determinado exercício é ou não de rotina. Nesses caso, o que há a fazer é perguntar ao professor.

Resolver problemas

Um conselho que sigo muitas vezes ao tentar resolver problemas foi dado já há décadas por George Pólya: se não se consegue fazê-lo, há um caso particular que também não se consegue resolver; deve-se então começar por aí. Não, isto não serve para todos os problemas, mas aplica-se a bastantes mais casos do que o que pode parecer à primeira vista. Não se consegue resolver um problema relativo a polinómios? Começa-se por tentar com polinómios de grau 1 ou 2. Está-se encravado num problema de matrizes? Vê-se o que se consegue fazer com matrizes com duas linhas e duas colunas. Não se avança num problema sobre funções deriváveis? Que tal começar por ver o que se consegue fazer se elas forem polinomiais?

Compreender os conceitos

Para cada conceito, deve-se conhecer pelo menos uma situação à qual este se aplica e pelo menos uma à qual este não se aplica. Assim, por exemplo, um primeiro (e importante) passo para se compreender o que é uma função derivável consiste em conhecer-se pelo menos um exemplo de uma função derivável e pelo menos um exemplo de uma função não derivável. Melhor ainda será conhecer-se um exemplo de uma função da qual se saiba que é derivável e porquê e um exemplo de uma função da qual se saiba que não é derivável e porquê. Naturalmente, é tarefa do professor fornecer tais exemplos, mas caso isso não aconteça convém sempre pedi-los. Mas é bom ter em mente que nem sempre é possível o professor satisfazer tais pedidos. Por exemplo, um número algébrico é um número que é solução de alguma equação polinomial com coeficientes inteiros. Posto isto e dado o que escrevi anteriormente, um professor que defina o conceito de número algébrico deveria dar um exemplo de um número algébrico, explicando porque é que o é, bem como o exemplo de um número não algébrico (aquilo que se designa por número transcendente), mais uma vez explicando porque é que o é. No entanto, embora seja fácil dar exemplos de números não algébricos (os mais conhecidos são π e e) não é trivial mostrar que um dado número não é algébrico.