O conjunto de Cantor

José Carlos Santos

Para cada α ∈ ]0,1], defino o conjunto Cα do seguinte modo:

  1. Seja I0 o intervalo [0,1].
  2. Subtraio a I0 o intervalo aberto central de comprimento α3; seja I1 o conjunto restante. Por outras palavras, I1 = I0\]12α6,12 + α6[ = [0,12α6] [12 + α6,1].
  3. O conjunto I1 é formado pela reunião disjunta de dois intervalos fechados de [0,1]. A cada um destes intervalos subtraio o intervalo aberto central de comprimento α9. Seja I2 o conjunto restante.
  4. Construo assim sucessivamente uma família decrescente (In)nN de sub-conjuntos de [0,1]. Cada In é uma reunião disjunta de 2n intervalos fechados de [0,1] e In + 1 obtém-se retirando a cada um destes intervalos o intervalo aberto central de comprimento α3n + 1.
  5. Defino:
    Cα =In.
    nZ+

Há uma passagem nesta definição cuja legitimidade exige uma demonstração. Para que o quarto ponto faça sentido é necessário demonstrar que o comprimento de cada um dos 2n intervalos fechados cuja reunião disjunta forma In é maior de que α3n + 1; caso contrário, não faz sentido falar no «intervalo aberto central de comprimento α3n + 1». Para justificar a passagem, repare-se que o conjunto I1 é obtido retirando-se de [0,1] um segmento de comprimento α3; logo, l (I1) = 1 − α3. Em seguida, obtém-se I2 retirando de I1 dois segmentos de comprimento α9, pelo que l (I2) = 1 − α39. Vê-se então que se tem:

n
(nZ+) : l (In) = 1 − 2k − 1α3k = 1 − α(1 − 2n3n)
k = 1

e então o que se quer mostrar é que:

(nZ+) : 2n(1 − α(1 − 2n3n)) > α3n + 1.


Verifica-se facilmente que esta expressão equivale a:

(nZ+) : (1 −α)2n > − 3n + 1.


e esta última proposição é obviamente verdadeira.1

Usualmente, a expressão «conjunto de Cantor» refere-se ao conjunto C1. Por isso, para designar este conjunto em particular vai ser usada a letra C, sem qualquer índice.


Teorema: Para cada α ∈ ]0,1] tem-se:

  1. O cardinal de Cα é igual ao cardinal de R.
  2. l (Cα) = 1 − α.
  3. Cα é compacto.
  4. Cα é perfeito (i. e. não tem pontos isolados).
  5. Cα é totalmente desconexo (i. e. os únicos sub-conjuntos conexos são os que são formados por um único ponto).

Além disso, o conjunto C é formado pelos números de [0,1] que podem ser escritos na base 3 usando unicamente os algarismos 0 e 2.


Demonstração: Cada In é reunião disjunta de 2n intervalos fechados; sejam I (n,0), I (n,1),…, I (n,2n − 1) esses conjuntos, numerados de modo que se k < l, então qualquer elemento de I (n,k) seja menor do que qualquer elemento de I (n,l ). Vê-se então que:

I (n,k) ⊃ I (n + 1,l )  sse  l = 2k ou l = 2k + 1. (1)

Visto que os intervalos I (n,0), I (n,1),…, I (n,2n − 1) são dois a dois disjuntos, o comprimento de cada um deles não excede 2n. Além disso, os extremos de cada I (n,k) são elementos de Cα, pois I (n,k)\Cα é um aberto e como tal está contido no interior de I (n,k), enquanto que os extremos de I (n,k) estão na fronteira. Repare-se que se xCα, então xnN I (n,k (n)), sendo os k (n) tais que I (n,k (n)) ⊃ I (n + 1,k (n + 1)). De facto {x} = nN I (n,k (n)), visto que o comprimento dos intervalos converge para zero.

Seja 2N o conjunto das funções de N em {0,1}. Vou construir uma bijecção B entre 2N e Cα. Seja (an)n ∈ 2N. Defino então B ((an)n) como sendo o único elemento do conjunto:

n
I (n,ak 2nk)
nNk = 1


Para justificar que esta definição faz sentido, veja-se que (1) implica que a família de intervalos de que estamos a calcular a intersecção é decrescente. Como todos estes intervalos são fechados, o princípio do encaixe dos intervalos diz que a intersecção não é vazia. Finalmente, como o comprimento dos intervalos tende para 0, a intersecção reduz-se a um ponto. Vê-se pela definição de Cα que esse ponto está necessariamente em Cα.

Para ver que a função B é injectiva, tomo dois elementos distintos (an)n e (bn)n de 2N. Seja N o menor número natural tal que aNbN. Então B ((an)n) ∈ I (N,1 ≤ kN ak2Nk) e B ((bn)n) ∈ I (N,1 ≤ kN bk2Nk). Estes dois conjuntos são disjuntos, de onde se tira que B ((an)n) ≠ B ((bn)n). Quanto à sobrejectividade, se xCα então {x} = nN I (n,k (n)). Visto que cada I (n,k (n)) contém I (n + 1,k (n + 1)), k (n + 1) = 2k (n) ou k (n + 1) = 2k (n) + 1. Vê-se então que x = B ((an)n), sendo an tal que k (n) = 2k (n − 1) + an.2 Visto que o cardinal de R é igual ao cardinal de 2N, deduz-se que também é igual ao cardinal de Cα.

O conjunto Cα está contido em [0,1] e [0,1] \ Cα é a reunião disjunta de um intervalo de comprimento α3 com dois intervalos de comprimento α9 com quatro intervalos de comprimento α27, etc. Logo, tem-se:

I ([0,1])\Cα =2k − 1α3k
k = 1


pelo que l (Cα) = 1 − α.

O conjunto Cα foi definido como sendo a intersecção de uma família de compactos. Logo, Cα é compacto.

Afirmar que Cα é totalmente desconexo é o mesmo que afirmar que não contém nenhum intervalo ]a,b[. Para justificar isso, tomo um nN. Então tem-se:

2n − 1
CαI (n,j).
j = 0


Esta reunião é disjunta. Se escolher n tal que 2n < ba, então cada I (n,j) tem comprimento inferior a ba; logo:

2n − 1
]a,b[ ⊄ I (n,j).
j = 0

Seja xCα. Vou mostrar que x não é um ponto isolado. Sei que:

{x} =I (n,k (n)).
nZ+

Considero então as sucessões:

mn = min I (n,k (n))

Mn = máx I (n,k (n))


Os extremos de cada intervalo I (n,j) pertencem a Cα, pelo que as duas sucessões são sucessões de elementos de Cα. Vê-se facilmente que se tem:

  1. (nZ+) : mnxMn
  2. (nZ+) : 0 < Mnmn ≤ 2n

pelo que ambas as sucessões (mn)n e (Mn)n convergem para x e pelo menos uma delas não é constante a partir de uma certa ordem. Logo, x não é um ponto isolado.

Finalmente, no caso do conjunto C, verifica-se facilmente que In (n ≥ 1) é formado pelos números do intervalo [0,1] que se podem escrever na base 3 usando unicamente os algarismos 0 e 2 nas n primeiras casas decimais.3

Q. E. D.

Exercício: Mostre que se U é um aberto de R e α ∈ ]0,1], então l (UCα) < l (U).

Nota: Entre as propriedades mais interessantes do conjunto de Cantor destacam-se as seguintes:

  1. Qualquer espaço métrico compacto, perfeito e totalmente desconexo é homeomorfo a C.
  2. Se M é um espaço métrico compacto, então existe uma aplicação contínua sobrejectiva de C em M.

Para a demonstração destes resultados, veja-se o livro General Topology de S. Willard.



Notas

… verdadeira.1
Também se deduz desta expressão que α não pode ser maior do que 1.
2
De facto, se se introduzir em 2N a distância d ((an)n,(bn)n) = n2n|anbn| é um homeomorfismo. Isto mostra que os Cα são homeomorfos dois a dois.
… decimais.3
Repare-se que 1 ∈ C, pois na base 3 o número 1 pode-se escrever sob a forma 0,222222222222…



2004–09–09